Profa. Dra. Aurora M. G. Gouveia
Médica Veterinária Sanitarista.
Professora da Escola de Veterinária da UFMG
aurora@vet.ufmg.br

 

Os ruminantes possuem um sistema digestivo peculiar, com características próprias bem definidas, o que lhes permite aproveitar os nutrientes contidos em alimentos fibrosos e grosseiros. Isto ocorre graças à ação de microrganismos (bactérias e protozoários) que habitam o trato digestivo, além da ação mecânica executada através do processo de ruminação.

O sistema digestivo, que tem como função, triturar, reduzir em pequenas partículas e digerir os alimentos começa na boca (lábios, língua, dentes e glândulas salivares). O esôfago é um tubo cilíndrico que se dilata facilmente e que conduz os alimentos da boca até o rúmen, com o qual se comunica por um orifício chamado cárdia.

Pré-estômagos

Os pré-estômagos dos ruminantes são amplamente utilizados na culinária, para fazer a famosa “dobradinha” ou “buchada”. Compreendem três compartimentos, rúmen, retículo e omaso, os quais representam os “estômagos falsos”, onde ocorre a digestão microbiana e a ação mecânica sobre os alimentos fibrosos e grosseiros.

O rúmen, pança ou bucho é o maior dos compartimentos, comportando 80% do volume total do estômago, e ocupa quase todo o lado esquerdo da cavidade abdominal. Em bovinos adultos pode conter até 200 litros, enquanto que em ovinos e caprinos sua capacidade é de aproximadamente 20 a 30 litros.

A parede do rúmen é revestida por uma mucosa coberta de papilas ligeiramente chatas, que lhe conferem o aspecto de “toalha felpuda”.

O rúmen comunica-se com o retículo através da goteira esofágica. Normalmente, as bordas da goteira esofágica estão separadas, deixando passar certos tipos de alimento (forragens sólidas, água, etc.), para o rúmen e o retículo. Entretanto, nos filhotes, a ingestão de leite provoca um reflexo que faz com que as bordas da goteira se unam, fazendo com que o leite passe diretamente ao abomaso.

O retículo ou barrete é o menor dos pré-estômagos, que atua como um "marca-passo” dos movimentos da ruminação. Seu interior é revestido por uma mucosa, cujos relevos dão um aspecto semelhante ao favo de abelha, e apresenta pequenas papilas.Comunica-se com o rúmen através de uma ampla abertura, com o omaso através de um estreito orifício e ainda com o esôfago através da goteira esofágica.

O omaso ou folhoso, cujas paredes são musculosas, tem seu interior revestido por mucosa curiosamente disposta em folhas ou lâminas, lembrando um livro, cobertas por numerosas papilas rugosas.

Estômago verdadeiro

O Abomaso, conhecido também por coalheira é o único estômago verdadeiro, ou seja, onde ocorre a secreção de suco gástrico, e onde se processa a digestão propriamente dita. De forma alongada, está situado à direita do rúmen e repousa sobre o abdômen, logo atrás do retículo. Um amplo orifício permite a passagem do alimento proveniente do omaso. Internamente, o abomaso é revestido por uma mucosa lisa, que contém numerosas glândulas que secretam o suco gástrico. O coalho, utilizado na fabricação de queijos, nada mais é que o suco gástrico de cabritos, cordeiros ou bezerros em aleitamento.

Outro orifício, o piloro, controlado por um esfíncter (músculo circular, forte), permite a passagem dos alimentos para o intestino delgado (ou “tripa”), que é um tubo estreito e longo, que pode alcançar de 20,0 a 25,0 metros, nos caprinos e ovinos, e compreende três porções: duodeno, jejuno e íleo. O intestino grosso é muito mais curto (4.0 a 8.0 metros) cuja porção terminal se enrola formando um “caracol”, denominado cólon, sendo que nesta parte ocorre a absorção de água, e formação das fezes pelos músculos da parede do cólon. Finalmente o cólon se comunica com o reto, onde as fezes se acumulam, e são eliminadas através do ânus.

O sistema digestivo compreende ainda as glândulas anexas (fígado e pâncreas), e é mantido por uma fina membrana, firme e transparente, recoberta de gordura, denominada peritôneo.

A digestão

Para serem utilizados pelo organismo, os alimentos devem ser previamente transformados. O sistema digestivo pode ser comparado a uma fábrica, onde são feitas diversas transformações da “matéria prima” que são triturados, misturados e transformados, através de mecanismos de natureza mecânica, microbiana e química.

Durante o pastejo, o objetivo maior dos ruminantes é o de encher o rúmen (daí a expressão “encher o bucho”!), ingerindo o alimento de forma rápida. Inicialmente, o alimento é apreendido com a boca, através dos dentes incisivos (é bom lembrar que os ruminantes possuem somente os dentes incisivos inferiores), e sofre apenas uma ligeira mastigação com auxílio dos dentes traseiros (molares superiores e inferiores). Ao mesmo tempo, os alimentos são umedecidos pela saliva, que é secretada em grande quantidade, com o objetivo de amolecer o alimento.

Este amolecimento continuará no rúmen, onde chega também a água ingerida pelo animal. Através dos movimentos das paredes do rúmen, com auxílio dos músculos pilares, os alimentos continuam a ser triturados mecanicamente. Ao auscultarmos ou colocarmos a mão, com o punho cerrado, sobre o flanco esquerdo do animal, podemos perceber os movimentos do rúmen, na freqüência de uma a duas contrações por minuto.

O conteúdo do rúmen segue então seu caminho em sentido contrário, em direção à boca, constituindo o processo de ruminação, ou seja, o retorno do bolo alimentar do rúmen para a boca, onde é submetido a uma nova mastigação e ensalivação, agora mais demoradas e completas. A calma e tranqüilidade ambiental são favoráveis a uma ruminação correta, com regurgitações espaçadas de um minuto. A parada da ruminação é um sinal de indisposição alimentar ou de doença.

Após bem triturado, o bolo alimentar é novamente deglutido, voltando ao rúmen, que continua em movimento. O alimento passará para o retículo, quando se apresentar com partículas suficientemente pequenas e fluidas podendo, para isto, ocorrer várias ruminações.

Todos os alimentos, durante sua permanência no rúmen, são decompostos pela ação da flora ruminal (bactérias e protozoários). Estes microrganismos se encontram aos milhares por mililitro de líquido, e estão especializados e adaptados a estes alimentos.

Comparemos o rúmen a uma pequena cidade, onde todos os habitantes são carpinteiros, que possuem conhecimentos e equipamentos especializados para trabalhar com madeiras de pinho. Se, de repente, o fornecedor passasse a entregar somente madeira de lei, estes carpinteiros iriam ter dificuldades, inicialmente, até que se adaptassem ao novo tipo de madeira. Analogamente, mudanças bruscas de alimentação (troca de feno por silagem, introdução de ração, etc.), podem causar distúrbios digestivos graves, pela falta de adaptação da flora rumenal ao novo alimento. Desta forma, toda alteração na alimentação deve ser gradativa, para adaptação da flora rumenal.

As bactérias da flora rumenal dividem-se em dois grupos principais:

  • As bactérias celulolíticas, que digerem os volumosos (capim, feno, silagem),
  • As amilolíticas, que digerem os concentrados (ração, milho, farelos, etc.).

Estes dois grupos devem estar em equilíbrio, ou seja, a flora amilolítica deve ser sempre menor que a celulolítica. Um aumento exagerado da flora amilolítica, causado pelo excesso de concentrados, causa sérios danos à digestão. Assim, somente os volumosos devem, ser dados à vontade, sendo, no caso do confinamento, fornecidos no mínimo três vezes ao dia, para que haja um funcionamento adequado da flora rumenal.

Existe uma verdadeira associação ou simbiose entre os microrganismos do rúmen e o próprio animal ruminante. Os microrganismos absorvem parte dos nutrientes dos alimentos, para sua própria manutenção. Em contrapartida, estes seres vivos microscópicos, ao morrerem, restituem seu conteúdo celular ao organismo, principalmente de substâncias nitrogenadas, que retornam ao circuito da digestão.

Entre os produtos resultantes das fermentações do rúmen, são produzidos também gases, como o metano e o carbônico, que são eliminados pela boca, através da eructação, graças aos movimentos rumenais.

O alimento, se adequadamente liquidificado, passa ao omaso onde é “prensado” pelas lâminas existentes na sua mucosa, perdendo assim boa parte do excesso de água passando, a seguir, ao abomaso.

No abomaso ou estômago verdadeiro, o alimento sofre ação química do suco gástrico (de forma semelhante ao que ocorre no estômago humano), secretado pelas glândulas presentes em sua mucosa. O suco gástrico contém: quimosina ou coalho, que provoca a coagulação da caseína do leite, além de pepsina, lípase, ácido clorídrico, etc., todos envolvidos no processo de digestão química.

Na forma semifluida, o bolo alimentar passa ao intestino, onde continua o processo químico, iniciado no abomaso, sofrendo ação de outras secreções do sistema digestivo (suco pancreático, bile e suco intestinal)

O estômago dos filhotes

Os ruminantes são mamíferos, necessitando no início da vida, do leite materno. O leite para ser digerido precisa sofrer a ação de enzimas contidas no suco gástrico produzido pelo abomaso que, ao nascimento, é o compartimento mais desenvolvido. Quando o filhote succiona a teta da mãe ou o bico da mamadeira, a goteira esofágica funciona como uma calha que desvia o leite, levando-o diretamente ao abomaso.

Na idade de 2-3 semanas o abomaso é ainda o compartimento mais desenvolvido (500 a 1.000 ml), já que o leite, nesta idade, ainda é o principal alimento. O rúmen, por sua vez, já apresenta uma capacidade significativa (250 a 500 mL), segundo a quantidade de alimentos sólidos que os filhotes estejam recebendo. Assim, é recomendável que, a partir da segunda semana de vida, os filhotes tenham disponíveis alimentos sólidos (feno, capim amarrado em pequenos feixes, ração concentrada), para estimular o desenvolvimento dos pré-estômagos, bem como o mecanismo da ruminação.


Figura 1 - Etrutura dos quatro estômagos dos ruminantes

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